quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ESCRITOS II

Genoveva*
Lembrar de Genoveva é voltar ao passado, percorrer espaços da infância, sentir odores, ouvir sons e rever imagens que ficaram gravadas na memória. A lembrança do fogão à lenha, da chapa quente e do cheiro gostoso da geléia de uva.
São marcas e marcos de uma história feita de dias e noites de trabalho.  O ferro à brasa, as roupas engomadas, o velho forno feito  de barro, de onde vinham os pães quentinhos no final da tarde, o chá de mate com leite, pão e nata, o jardim florido e bem cuidado, hortênsias,  margaridas, rosas...
Na horta, a couve, a salsinha, a cebolinha e, é claro, os chás para a gripe, a tosse, guaco, poejo, folha de laranja. A brasa da lenha colocada sobre o açúcar e o cheiro daquele tempo, chegando devagarinho... O respeito pela natureza (recordo-me do costume de deixar água nos potes para os passarinhos beberem). Nossa religiosidade. A pequena imagem de Santo Antônio na cabeceira (de quantos sonhos ruins ele me protegeu!) e a de Nossa Senhora na grutinha, em frente da casa, junto das flores.
Havia, também, o benzimento contra “quebranto e mau olhado”: três pedacinhos de brasa quente dentro d’ água, algumas palavras ensinadas (sabedoria passada de mãe para filha, através das gerações), três goles e pronto. Todas as dores sumiam. Como elas somem hoje, ainda, quando recordo desse e de outros fatos.  Lembro das férias da escola: o caminho da casa dos pais para a casa da avó. O rio Itaquarinchim e a ponte que parecia tão perigosa. Cruzá-la, na imaginação infantil, era como cruzar uma fronteira que separava dois lugares muito distantes. Hoje, conhecendo o mapa da cidade, percebo o quanto isso tinha de real: o bairro e o centro, a cidade asfaltada e a cidade sem calçamento.
A cidade que, a partir da minha infância fui descobrindo naquele pequeno roteiro percorrido nos meses das férias escolares, possuía características que só depois de adulta pude compreender. Os odores exalados pelo Frigorífico e pelo Curtume, os trilhos dos trens desativados (mesmo assim, sentia medo de atravessá-los), os sons que vinham do quartel, todas as manhãs. A cantiga para levantar: “ Acorda, Maria Bonita, levanta, vem fazer o café, que o dia já está raiando e a polícia está de pé”.
São fragmentos que ficaram e ajudaram a perceber onde estão fincadas minhas raízes, de onde vem meu sentimento de pertencimento a esse lugar, essa curiosidade pelo passado e a certeza de ser parte dessa história. Prestes andou por aqui, o escultor austríaco Valentin Von Adamovich, que morreu pobre e sem o reconhecimento por suas obras, pisou esse chão, o entregador de gelo –Domingão- percorreu essas ruas várias vezes...

Bedati Finokiet

* In Memorian minha querida avó Genoveva Finokiet.

 
Foto: Casamento de Genoveva Kazmirczak Finokiet ( * 01-01-1919) (+ 10-06-2000)  e João Finokiet  ( * 24-06-1917)  (+07-10-1989)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Escritos I


CARTA PARA MEUS FILHOS
Bedati Finokiet


 Meus amados, Gabriel e Matheus!
Imaginem estas linhas, como aquelas cartas dos filmes, que viajam distâncias enormes dentro de uma garrafa, pelo mar afora. Imaginem esta carta, encontrada no fundo de um baú, repleto de outros documentos do passado. Imaginem esta carta como aqueles livros de histórias que lemos diversas vezes juntos. Um belo livro ilustrado com fotos de praças, prédios, ruas e pessoas de uma cidade chamada Santo Ângelo. 
Quero lhes dizer desta cidade na qual nascemos, eu e vocês, e explicar aquilo que devem ter percebido, através de palavras e atitudes e por força de meu ofício: o amor que tenho por esta terra e a forma como fui seduzida pela pesquisa sobre sua História.
Foi assim, pesquisando, perguntando e escutando respostas que chegam dos variados tipos de documentos e colhendo depoimentos dos muitos moradores daqui, que passei a ter orgulho de morar em Santo Ângelo e de querer fazer algo para que esse, seja sim, um Lugar bom de se viver.

Um passeio pelo nosso Patrimônio Cultural

Poderia escrever sobre diversas coisas e acontecimentos relacionados aos longos anos que cobrem a História local. Poderia falar de seus personagens, cenários e enredos... Para que guardem um pouco da memória de nossa época, convido-os a realizarem um passeio agradável, visitando espaços considerados referenciais do nosso Patrimônio Cultural.
Patrimônio Cultural que traduz aspectos das transformações ocorridas no decorrer do tempo e que hoje, apesar da divulgação de uma consciência preservacionista, correm risco e, pode ser que não sobrevivam para a posteridade.
Desvendar os mistérios e os segredos por trás do aparente silêncio desse patrimônio, visitado por tantos que vêm de longe para conhecê-lo, é algo que nos leva a desejar descobrir nossa identidade em meio a isso tudo, através do respeito ao legado de nossos antepassados. Esse respeito vem carregado do sentimento de alteridade e da certeza de que se não buscamos conhecer nossa História, acabamos por perder nossos referenciais.
É por isso que inicio, por um dos lugares carregado de significados: o entorno da Praça Pinheiro Machado.

A Praça Pinheiro Machado e suas imediações

Praça Pinheiro Machado, prédio da Intendência (hoje existe ali o prédio da Prefeitura Municipal), Igreja ( substituída pela  Catedral) e seu entorno, em 1900.

Imaginem meus meninos, este local já foi palco de vários acontecimentos. A praça já foi o centro da antiga Redução de Santo Ângelo Custódio, servindo de espaço para a realização de festas religiosas, espetáculos teatrais, exercícios de guerra e, até, uma espécie de torneio chamado de Cavalhada. Contam os relatos, que naquela época (século XVIII), a praça não possuía árvores e, ao seu redor ficavam as casas dos índios, a igreja, o cotiguaçu (casa das viúvas e órfãos), oficinas, colégio, cabildo e casa dos padres jesuítas. Hoje, esta praça é constantemente visitada pelos turistas que vêm conhecer um pouco mais sobre a História das Missões.  Ali, temos expostos alguns remanescentes da nossa antiga redução. Eles estão colocados bem em frente da Catedral Angelopolitana, sendo bases de pilares, colunas e algumas pedras que faziam parte da sua estrutura arquitetônica.
Ao mencionar a praça, é impossível não destacar uma outra preciosidade patrimonial local, a Catedral Angelopolitana, terceira igreja existente nesse mesmo espaço, tendo sido construída no período de 1929 até 1970.
Se pararmos no meio da praça e olharmos em todas as direções, podemos perceber que esse espaço preserva vestígios importantes de um acontecimento estudado e debatido por vários pesquisadores e historiadores do mundo: a fundação dos Povos Missioneiros. É essa experiência, com toda a análise crítica que se deve fazer, o fator a colocar em evidência, por exemplo, o prédio do Museu Municipal (construído a partir do reaproveitamento das estruturas de uma antiga casa guarani do tempo reducional). É, também, essa experiência que coloca em destaque uma rua pequenina, a rua 3 de Maio ( rua Missioneira), tombada como Patrimônio Histórico Local por manter as mesmas dimensões daquele período.
Observando, atentamente, vemos num dos lados da praça, o prédio da Prefeitura Municipal, igualmente tombado por lei municipal por caracterizar, através de sua arquitetura eclética e com influências do neoclássico, um estilo  surgido no início do século XX. Este prédio foi inaugurado em 1929.

 
Praça Pinheiro Machado- Bedati e Gabriel, dez/2009
Também de estilo eclético, temos o prédio da Farmácia Licht, inaugurado em 1926. Veja bem, estamos falando de um prédio, ainda existente e construído em plena década de 1920, uma década conturbada na História do Brasil. Basta lembrar do movimento tenentista, da Coluna Prestes, da Semana da Arte Moderna e da Fundação do Partido Comunista. No âmbito local, este prédio nos faz recordar dos tempos em que existiam poucos médicos no município e os farmacêuticos como o senhor Licht, tinham papel fundamental para os moradores.
Preservar esses e os outros prédios existentes, como é o caso do prédio da antiga casa do major Afonso Cortes (localizada na esquina da Rua Bento Gonçalves com a Marquês do Herval- diagonal com a praça), construído no início do século XX, ou mesmo do atual prédio da Moto Peursi (também construído naquela época e que já  foi sede do Colégio Verzéri e da Estação Telegráfica do Município e hoje possui , exposta no seu interior, uma adega do período jesuítico-guarani), significa valorizarmos essa riqueza patrimonial, deixando um legado para as gerações que virão.
Seguindo em nosso passeio, podemos atravessar a cidade e chegar até uma rua muito antiga, tão especial por retratar épocas. Essa rua já foi a “Rua da Lagoa”, a lagoa onde, as suas margens, carroceiros e tropeiros acampavam. Depois, ela foi a “14 de Julho”, com suas casas de comércio, seu movimento e os trilhos da Estrada de Ferro que avançavam e chegavam pela Marechal Floriano até a esquina com a Marquês do Herval, lá nas oficinas das máquinas. Passado algum tempo, ela recebeu outro nome: “25 de Julho”, mas nunca mudou seu contorno e ainda conserva prédios como o da Casa Ortmann ( Loja Farroupilha), construído em 1916. O mais curioso, da história dessa rua, é que ela chegou a dividir, em certa época, a cidade em dois territórios distintos: o Brasil e a Alemanha, ou seja, o Povo Velho( lado sul) e o Povo Novo(lado norte).
Como dá para perceber, crianças, esta carta/diário poderia se alongar contando detalhes da vida dos moradores a partir de cada um desses prédios, de cada palmo desse chão, cada esquina, cada cor, detalhes da fachada, de cada ano que aparece gravado em alto relevo em muitas das construções, testemunhas de outros tempos.
É possível seguir caminhando e ir cruzando com outras arquiteturas, como é o caso do antigo Cinema Avenida, memória dos dias em que, por ali, transitaram homens e mulheres, crianças e idosos, em busca da diversão, do sonho e da magia do cinema mudo. Descendo pela Avenida Brasil, avistamos mais um dos prédios tombados, uma relíquia que resiste ao tempo: o prédio da Estação Ferroviária, hoje, Memorial Coluna Prestes e Museu Ferroviário. Se aguçarmos nossos ouvidos, talvez, possamos escutar o sino anunciando a partida do trem. De lá vêm as vozes dos passageiros e o apito da locomotiva. Veja só, quanta gente na plataforma esperando para embarcar!
Embarquemos, pois, na viagem imaginária para seguir em frente, só parando quando percebemos a sombra da velha Magnólia, tão grandiosa com seus galhos que parecem querer abraçar a todos os visitantes, numa agradável acolhida. Deixe sua sensibilidade trazer à tona as imagens dos tropeiros ali acampados, através dos sons dos relatos que ficaram na memória.
Para terminar nosso passeio, que poderia perdurar por mais páginas, escolhi levá-los a dois distritos que expressam a contribuição de outras culturas para a formação étnica local e o desenvolvimento econômico do município, são eles: Lajeado do Cerne e Buriti. Cada qual serve de exemplo para dizer da variedade de costumes que possuímos em função dessa miscigenação étnica. Poderíamos fazer alusão aos outros distritos, de igual importância, porém, isso ficará para uma outra carta.
Do Lajeado do Cerne, podemos falar dos sabores e cheiros originários da cozinha típica italiana e do Museu existente, com toda uma variedade de objetos conservados como testemunhos dos primeiros imigrantes aqui chegados. Vale destacar a beleza e o encanto da casa do primeiro imigrante italiano de Lajeado do Cerne, Valentin Colovini, construída por ele e seus filhos no início do século passado. Essa propriedade preserva características do estilo italiano de construções, merecendo, pois, uma atenção especial para que não se perca, enquanto registro de uma época.
Indo ao distrito de Buriti, percebe-se a forte característica da imigração alemã, a partir de suas casas e demais construções. Vale destacar a existência de um rico acervo fotográfico custodiado por muitas famílias, além do Santuário de Fátima, localizado no sítio do padre Gebert, onde existe, também, um museu com diversos materiais relativos à colonização local e regional.
Bem, queridos Gabriel e Matheus, é para vocês que deixo este relato, para que a notícia desses dias não se perca. Espero que , assim como eu, possam ter o privilégio de conviver e conhecer essa paisagem descrita/inscrita através do tempo e do espaço e que ficarão gravadas nas nossas memórias.



Utopia

Cacique José Cirilo Pires Morinico

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Cacique Geral dos Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul

Vitrine - Claude Lévi-Strauss

Hasta Siempre - Comandante Che Guevara

Nós e a Cidade / Us and the city (Mbya-Guarani)

TEKOÁ KOENJU OJEXAUKA - ALDEIA ALVORECER SE APRESENTA

Livro lançado em outubro, na Feira do Livro de Santo Ângelo: TEKOÁ KOENJU OJEXAUKA


PUTIRÕ

Putirõ, mutirão, auxílio recíproco no trabalho conjunto. Eis o termo que dá a dimensão da construção dessa obra que foi gestada a partir da sensibilidade e generosidade da Comunidade Mbyá-Guarani da Tekoá Koenju, residente em São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul.
Esse “filho” que, ora chega as suas mãos, traz as marcas da reciprocidade Guarani no trabalho coletivo de abrir sua aldeia para mostrar um pouco do seu cotidiano. Ele vem impregnado da cor da terra, sagrada na realização dos seus roçados e na construção das suas casas tradicionais; do cheiro da Tataxina, quem vem do Petynguá; do sabor do mbojapé e do avatí; dos sons da mata e do Inhacapetum; da imagem dos pequenos animais confeccionados em seu artesanato, enfim, da sua cultura. Sobretudo, vem carregado das Belas Palavras, desses autores e colaboradores Guarani, que nos permitiram reproduzir aqui, um pouco de sua sabedoria, do seu “modo de ser”, o Nhande Reko. São as palavras do Cacique Ariel Ortega – Kuaray Poty, da sua esposa e professora indígena da aldeia, Patrícia Ferreira – Kerexu Rete, do sábio Mariano Aguirre - Karai Tata Hendy, do Karaí Solano, de Elza Chamorro – Para Yxapy, do Pedro - Verá Txiunu e de tantos outros que, são protagonistas dessa história.
            Mby é outra expressão Guarani que ajuda a compreender esse livro, ou seja, Coração. Eis a palavra que lembra uma fala do Cacique Geral dos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, José Cirilo Pires Morinico – Mburuvixá Tenondé Kuaray Nheery, quando esteve em Santo Ângelo, em 2008: ”Nós queremos chegar até o branco, pelo coração”. É assim que entregamos essas páginas que se somam às iniciativas no sentido de combater o preconceito e a discriminação em relação aos povos indígenas, respeitando sua diversidade cultural.
            Japoi, mãos abertas para dar e receber, como dádiva e dom mútuo. As mãos Guarani que semeiam o roçado, imagem emblemática na capa, simbolizam a semente que se almeja com esse projeto. Pensado e implementado a partir da participação efetiva desses autores, dos seus depoimentos transformados em textos e das fotos, feitas por eles na aldeia,considerando a importância de tal publicação.
            Cabe destacar  e agradecer esse trabalho de autoria Guarani, permitindo o registro de suas falas e disponibilizando-se , também, a captar as imagens da Tekoá, através das lentes da câmera digital. De nossa parte, coube, tendo em vista todos esses anos de contato, pesquisa e aprendizado, apresentar um pouco do que nos foi oferecido como dádiva, isto é, o conhecimento sobre seu Reko, manifestado nas fotos                    ( selecionadas pelo Cacique Ariel), bem como, fragmentos de nosso diário de campo.
                                                                      

Bedati Finokiet